Por
unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou,
nesta quinta-feira (24), a constitucionalidade do artigo 41 da Lei
11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que afastou a aplicação do artigo 89
da Lei nº 9.099/95 quanto aos crimes praticados com violência doméstica e
familiar contra a mulher, tornando impossível a aplicação dos
institutos despenalizadores nela previstos, como a suspensão condicional
do processo.
A decisão foi tomada no julgamento do Habeas Corpus (HC) 106212, em
que Cedenir Balbe Bertolini, condenado pela Justiça de Mato Grosso do
Sul à pena restritiva de liberdade de 15 dias, convertida em pena
alternativa de prestação de serviços à comunidade, contestava essa
condenação. Cedenir foi punido com base no artigo 21 da Lei 3.688 (Lei
das Contravenções Penais), acusado de ter desferido tapas e empurrões em
sua companheira. Antes do STF, a defesa havia apelado, sucessivamente,
sem sucesso, ao Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul
(TJ-MS) e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
No HC, que questionava a última dessas decisões (do STJ), a
Defensoria Pública da União (DPU), que atuou em favor de Cedenir no
julgamento desta tarde, alegou que o artigo 41 da Lei Maria da Penha
seria inconstitucional, pois ofenderia o artigo 89 da Lei 9.099/95.
Esse dispositivo permite ao Ministério Público pedir a suspensão do
processo, por dois a quatro anos, nos crimes em que a pena mínima
cominada for igual ou inferior a um ano, desde que o acusado não esteja
sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime.
A DPU alegou, também, incompetência do juízo que condenou Cedenir,
pois, em se tratando de infração de menor poder ofensivo, a competência
para seu julgamento caberia a um juizado criminal especial, conforme
previsto no artigo 98 da Constituição Federal (CF), e não a juizado
especial da mulher.
Decisão
Todos os ministros presentes à sessão de hoje do Plenário – à
qual esteve presente, também, a titular da Secretaria Especial de
Políticas para Mulheres, Iriny Lopes – acompanharam o voto do relator,
ministro Marco Aurélio, pela denegação do HC.
Segundo o ministro Marco Aurélio, a constitucionalidade do artigo 41
dá concretude, entre outros, ao artigo 226, parágrafo 8º, da
Constituição Federal (CF), que dispõe que “o Estado assegurará a
assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando
mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.
O ministro disse que o dispositivo se coaduna com o que propunha Ruy
Barbosa, segundo o qual a regra de igualdade é tratar desigualmente os
desiguais. Isto porque a mulher, ao sofrer violência no lar, encontra-se
em situação desigual perante o homem.
Ele descartou, também, o argumento de que o juízo competente para
julgar Cedenir seria um juizado criminal especial, em virtude da baixa
ofensividade do delito. Os ministros apontaram que a violência contra a
mulher é grave, pois não se limita apenas ao aspecto físico, mas também
ao seu estado psíquico e emocional, que ficam gravemente abalados quando
ela é vítima de violência, com consequências muitas vezes indeléveis.
Votos
Ao acompanhar o voto do relator, o ministro Luiz Fux disse que os
juizados especiais da mulher têm maior agilidade nos julgamentos e
permitem aprofundar as investigações dos agressores
domésticos, valendo-se, inclusive, da oitiva de testemunhas.
Por seu turno, o ministro Dias Toffoli lembrou da desigualdade
histórica que a mulher vem sofrendo em relação ao homem. Tanto que, até
1830, o direito penal brasileiro chegava a permitir ao marido matar a
mulher, quando a encontrasse em flagrante adultério. Entretanto,
conforme lembrou, o direito brasileiro vem evoluindo e encontrou seu
ápice na Constituição de 1988, que assegurou em seu texto a igualdade
entre homem e mulher.
Entretanto, segundo ele, é preciso que haja ações afirmativas para
que a lei formal se transforme em lei material. Por isso, ele defendeu a
inserção diária, nos meios de comunicação, de mensagens afirmativas
contra a violência da mulher e de fortalecimento da família.
No mesmo sentido votou também a ministra Cármen Lúcia, lembrando que a
violência que a mulher sofre em casa afeta sua psique (autoestima) e
sua dignidade. “Direito não combate preconceito, mas sua manifestação”,
disse ela. “Mesmo contra nós há preconceito”, observou ela,
referindo-se, além dela, à ministra Ellen Gracie e à
vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat. E esse preconceito,
segundo ela, se manifesta, por exemplo, quando um carro dirigido por um
homem emparelha com o carro oficial em que elas se encontrem, quando um
espantado olhar descobre que a passageira do carro oficial é mulher.
“A vergonha e o medo são a maior afronta aos princípios da dignidade
humana, porque nós temos que nos reconstruir cotidianamente em face
disto”, concluiu ela.
Também com o relator votaram os ministros Ricardo Lewandowski,
Joaquim Barbosa, Ayres Britto, Gilmar Mendes, Ellen Gracie e o
presidente da Corte, ministro Cezar Peluso. Todos eles endossaram o
princípio do tratamento desigual às mulheres, em face de sua histórica
desigualdade perante os homens dentro do lar.
O ministro Ricardo Lewandowski disse que o legislador, ao votar o
artigo 41 da Lei Maria da Penha, disse claramente que o crime de
violência doméstica contra a mulher é de maior poder ofensivo. Por seu
turno, o ministro Joaquim Barbosa concordou com o argumento de que a Lei
Maria da Penha buscou proteger e fomentar o desenvolvimento do núcleo
familiar sem violência, sem submissão da mulher, contribuindo para
restituir sua liberdade, assim acabando com o poder patriarcal do homem
em casa.
O ministro Ayres Britto definiu como “constitucionalismo fraterno” a
filosofia de remoção de preconceitos contida na Constituição Federal de
1988, citando os artigos 3º e 5º da CF. E o ministro Gilmar Mendes, ao
também votar com o relator, considerou “legítimo este experimento
institucional”, representado pela Lei Maria da Penha. Segundo ele, a
violência doméstica contra a mulher “decorre de deplorável situação de
domínio”, provocada, geralmente, pela dependência econômica da mulher.
A ministra Ellen Gracie lembrou que a Lei Maria da Penha foi editada
quando ela presidia o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e ensejou um
impulso ao estabelecimento de juizados especiais da mulher.
Em seu voto, o ministro Cezar Peluso disse que o artigo 98 da
Constituição, ao definir a competência dos juizados especiais, não
definiu o que sejam infrações penais com menor poder ofensivo. Portanto,
segundo ele, lei infraconstitucional está autorizada a definir o que
seja tal infração.
FK/CG